RESOLUÇÃO
CFM Nº 1.805/2006
(Publicada
no D.O.U., 28 nov. 2006, Seção I, pg. 169)
(Resolução
suspensa por decisão liminar do M. Juíz Dr. Roberto
Luis Luchi Demo, nos autos da Ação Civil Pública n.
2007.34.00.014809-3, da 14ª Vara Federal, movida pelo Ministério Público
Federal)
Na
fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar
ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente,
garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao
sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do
paciente ou de seu representante legal.
O
Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, regulamentada pelo
Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958,
e
CONSIDERANDO que os Conselhos de
Medicina são ao mesmo tempo julgadores e disciplinadores da classe médica,
cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito
desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos
que a exerçam legalmente;
CONSIDERANDO o art. 1º, inciso III,
da Constituição Federal, que elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana
como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil;
CONSIDERANDO o art. 5º, inciso III,
da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante”;
CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar
pelo bem-estar dos pacientes;
CONSIDERANDO
que o
art. 1° da Resolução CFM n° 1.493, de 20.5.98, determina ao diretor clínico
adotar as providências cabíveis para que todo paciente hospitalizado tenha o seu
médico assistente responsável, desde a internação até a
alta;
CONSIDERANDO que incumbe ao médico
diagnosticar o doente como portador de enfermidade em fase
terminal;
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em reunião
plenária de 9/11/2006,
RESOLVE:
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação
de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas
adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no
caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente
ou a seu representante legal o direito de solicitar uma
segunda opinião médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.
Art. 3º Esta resolução entra em
vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.
Brasília, 9 de novembro de 2006
EDSON DE
OLIVEIRA ANDRADE
LÍVIA BARROS GARÇÃO
Presidente Secretária-Geral
EXPOSIÇÃO DE
MOTIVOS
A
medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação
médico-enfermo. A ética médica tradicional, concebida no modelo hipocrático, tem forte acento paternalista. Ao enfermo cabe,
simplesmente, obediência às decisões médicas, tal qual uma criança deve cumprir
sem questionar as ordens paternas. Assim, até a primeira metade do século XX,
qualquer ato médico era julgado levando-se em conta apenas a moralidade do
agente, desconsiderando-se os valores e crenças dos enfermos. Somente a partir
da década de 60 os códigos de ética profissional passaram a reconhecer o doente
como agente autônomo.
À
mesma época, a medicina passou a incorporar, com muita rapidez, um
impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e novas metodologias criadas para aferir e controlar
as variáveis vitais ofereceram aos profissionais a
possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século XX o tempo
estimado para o desenlace após a instalação de enfermidade grave era de cinco
dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico hoje
disponível que não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer sem a
anuência do médico.
Bernard
Lown, em seu livro A arte perdida de curar, afirma: “As
escolas de medicina e o estágio nos hospitais os preparam (os futuros médicos)
para tornarem-se oficiais-maiores da ciência e
gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se ensina sobre a arte de ser
médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar com a
morte. A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável
do morrer.”
O
poder de intervenção do médico cresceu enormemente, sem que, simultaneamente,
ocorresse uma reflexão sobre o impacto dessa nova realidade na qualidade de vida
dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefícios auferidos com as novas
metodologias diagnósticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas salvas em
situações críticas, como, por exemplo, os enfermos recuperados após infarto
agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves distúrbios hemodinâmicos que
foram resgatados plenamente saudáveis por meio de engenhosos procedimentos
terapêuticos.
Ocorre
que nossas UTIs passaram a receber, também, enfermos
portadores de doenças crônico-degenerativas incuráveis, com intercorrências clínicas as mais diversas e que são
contemplados com os mesmos cuidados oferecidos aos agudamente enfermos. Se para
os últimos, com freqüência, pode-se alcançar plena recuperação, para os crônicos
pouco se oferece além de um sobreviver precário e, às vezes, não mais que
vegetativo. É importante ressaltar que muitos enfermos, vítimas de doenças
agudas, podem evoluir com irreversibilidade do quadro. Somos expostos à dúvida
sobre o real significado da vida e da morte. Até quando avançar nos
procedimentos de suporte vital? Em que momento parar e, sobretudo, guiados por
que modelos de moralidade?
Aprendemos muito sobre tecnologia de ponta e
pouco sobre o significado ético da vida e da morte. Um trabalho publicado em
1995, no Archives of Internal Medicine, mostrou que
apenas cinco de cento e vinte e seis escolas de medicina norte-americanas
ofereciam ensinamentos sobre a terminalidade humana.
Apenas vinte e seis dos sete mil e quarenta e oito programas de residência
médica tratavam do tema em reuniões científicas.
Despreparados
para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do
enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e sofrida
agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e
prolongado sofrimento para o doente e sua família. A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo
médico diante de um enfermo com doença grave e incurável; portanto, entende-se
que existe uma doença em fase terminal, e não um doente terminal. Nesse caso, a
prioridade passa a ser a pessoa doente e não mais o tratamento da
doença.
As
evidências parecem demonstrar que esquecemos o ensinamento clássico que
reconhece como função do médico “curar às
vezes, aliviar muito freqüentemente e confortar sempre”. Deixamos de cuidar
da pessoa doente e nos empenhamos em tratar a doença da pessoa, desconhecendo
que nossa missão primacial deve ser a busca do bem-estar físico e emocional do
enfermo, já que todo ser humano sempre será uma complexa realidade biopsicossocial e espiritual.
A
obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo nos conduz à obstinação
diagnóstica e terapêutica. Alguns, alegando ser a vida um bem sagrado, por nada
se afastam da determinação de tudo fazer enquanto restar um débil “sopro de
vida”. Um documento da Igreja Católica, datado de maio de 1995, assim considera
a questão: “Distinta
da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado
excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções
médicas já inadequadas à situação
real do doente, porque não proporcionais aos resultados que se
poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a
sua família. Nestas situações, quando a morte se
anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência
renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento
precário e penoso da vida”.
Inevitavelmente,
cada vida humana chega ao seu final. Assegurar que essa passagem ocorra de forma
digna, com cuidados e buscando-se o menor sofrimento possível, é missão daqueles
que assistem aos enfermos portadores de doenças em fase terminal. Um grave
dilema ético hoje apresentado aos profissionais de saúde se refere a quando não utilizar toda a tecnologia
disponível. Jean Robert Debray, em seu livro L’acharnement
thérapeutique, assim conceitua a obstinação
terapêutica: “Comportamento médico que
consiste em utilizar procedimentos terapêuticos cujos efeitos são mais nocivos
do que o próprio mal a ser curado. Inúteis, pois a cura é impossível e os
benefícios esperados são menores que os inconvenientes provocados”. Essa
batalha fútil, travada em nome do caráter sagrado da vida, parece negar a
própria vida humana naquilo que ela tem de mais essencial: a
dignidade.
No
Brasil, há muito o que fazer com relação à terminalidade da vida. Devem ser incentivados debates, com a sociedade e com
os profissionais da área da saúde, sobre a finitude do
ser humano. É importante que se ensine aos estudantes e aos médicos, tanto na
graduação quanto na pós-graduação e nos cursos de aperfeiçoamento e de
atualização, as limitações dos sistemas prognósticos; como utilizá-los; como
encaminhar as decisões sobre a mudança da modalidade de tratamento curativo para
a de cuidados paliativos; como reconhecer e tratar a dor; como reconhecer e
tratar os outros sintomas que causam desconforto e sofrimento aos enfermos; o
respeito às preferências individuais e às diferenças culturais e religiosas dos
enfermos e seus familiares e o estímulo à participação dos familiares nas
decisões sobre a terminalidade da vida. Ressalte-se
que as
escolas médicas moldam profissionais com esmerada preparação
técnica e nenhuma ênfase humanística.
O
médico é aquele que detém a maior responsabilidade da “cura” e, portanto, o que
tem o maior sentimento de fracasso perante a morte do enfermo sob os seus
cuidados. Contudo, nós, médicos, devemos ter em mente que o entusiasmo por uma
possibilidade técnica não nos pode impedir de aceitar a morte de um doente. E
devemos ter maturidade suficiente para pesar qual modalidade de tratamento será
a mais adequada. Deveremos, ainda, considerar a eficácia do tratamento
pretendido, seus riscos em potencial e as preferências do enfermo e/ou de seu
representante legal.
Diante
dessas afirmações, torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que
certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser humano
até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e
familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma
mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade
humana e sobre o processo do morrer.
Torna-se
vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque
terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, para o
qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados
paliativos, ou seja, uma abordagem
voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares
frente a problemas associados a doenças que põem em risco a vida. A atuação
busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do reconhecimento precoce,
de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros
sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou
espiritual.